Quando Babi Tils (Bárbara Barbosa) subir em alguns dos palcos do Carnaval de Brasília este ano, ela será a maior estrela para uma plateia muito especial, vidrada em imagens e vibrações. São as pessoas com deficiências (PcDs) auditivas. Babi faz parte de um bloco de tradutores e intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais) cujo enredo é potencializar a linguagem gestual – reconhecida por lei federal em 2002 – com samba no pé, coreografia, maquiagem, plumas e paetês, permitindo que os PcDs usufruam mais da folia.
A presença de profissionais de Libras é uma exigência de editais do Fundo de Apoio a Cultura (FAC), da Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec) ,para fomentar espetáculos no Distrito Federal. “Recentemente, publicamos normas que reforçam obrigações legais e trazem inovações nos editais da Secec sobre a obrigatoriedade de intérprete de Libras em pelo menos uma apresentação”, explica a chefe da Assessoria Jurídico-Legislativa da secretaria, Laís Valente.
Ela lembra que a medida faz parte de outras determinações da pasta em termos de acessibilidade. “Assumimos o compromisso com a inclusão de pessoas com deficiência tanto na fruição quanto na produção cultural, principalmente em eventos tradicionais como o Carnaval, reforçando o caráter popular e democrático das manifestações artísticas”, afiança a gestora.
Agentes culturais avaliam positivamente a injunção do poder público. “A cultura do DF entrou em festa nestes tempos pós-pandemia. Reencontramos amigos, músicas e ritmos. O Carnaval de Brasília traz muita nostalgia, e nós não podemos ficar de fora”, declara Luérgio de Sousa, surdo, falante de Libras, representante da comunidade surda de Brasília e graduando em cinema.
Ele elogia o esforço do governo em exigir a presença de intérpretes e tradutores de Libras porque testemunha que parte do mercado resiste em atender às necessidades das pessoas com deficiência auditiva. Essa resistência de parcela dos produtores culturais se estende a disponibilizar equipamentos como pisos vibracionais, que amplificam a vibração sonora, facilitando sua percepção pelo corpo a partir dos pés.
Ele experimentou essa sensação numa apresentação do Cafuçu do Cerrado, um dos blocos que abriram o Carnaval deste ano na capital federal. “Me apoiei no piso, e ele ampliou o som e a vibração sonora pelo meu corpo, dos pés para cima. Foi como estar tocando na caixa de som em alto volume. Foi maravilhoso”, celebra.
Trata-se de tecnologia cara, segundo o produtor cultural Lucas Alexandre Formiga Dantas. “Festivais de grande porte têm total condição de realizar esse tipo de ação”, diz ele. “Acaba sendo um pouquinho caro, mas acho que devemos incorporar mais”, acredita. Além do piso, ele conta que há outros modos de sensibilizar para a questão auditiva, como notificações por flashes e luzes, letreiros luminosos com a letra da música e vídeos interativos.
O presidente da Associação Distrital de Tradutores, Intérpretes e Guias Intérpretes de Línguas de Sinais, Raphael dos Anjos, atua há 15 anos em tradução e interpretação audiovisual, cultural, de conferências e educacional. A associação existe desde 2021 e tem cerca de 30 integrantes. “Ainda enfrentamos entraves como a baixa remuneração e a desvalorização dos profissionais, que às vezes são incitados até a trabalhar voluntariamente”, denuncia. Raphael é mestre em estudos da tradução, tradutor da Universidade de Brasília (UnB) e da TV Câmara dos Deputados.
Valorização
A jornalista Érica Cidade, com 19 anos de experiência profissional, valoriza a tradução/interpretação para Libras. Ela é assessora de imprensa no Setor Carnavalesco Sul desde 2019. “A inclusão faz toda a diferença para quem trabalha com festas, e a inclusão pela comunicação está se fortalecendo nos últimos anos”, testemunha. “A primeira vez que vi um intérprete de Libras foi no Setor Carnavalesco Sul em 2020, logo antes da pandemia. Foi muito marcante. Ela se destacava em cima do palco, toda paramentada, interagindo o tempo todo a partir de seu cantinho, numa comunicação corporal muito forte, que levava a emoção para o público”.
Érica entende que a exigência de intérprete nessa e em outras plataformas é um estímulo que precisa ser reforçado para que a ação se incorpore à cultura do DF. “É uma contribuição inestimável. Quando a gente anuncia que vai ter, a gente recebe muita gente, familiares, associações. É muito bom o governo estar ligado nessa necessidade de parte do público”, elogia.
A intérprete cujo trabalho chamou a atenção de Érica é a personagem que abriu esta matéria. Babi Tils é intérprete de Libras desde 2001, acumula experiência no ativismo pelos direitos das pessoas com deficiência, é consultora, palestrante e executiva de uma empresa de recursos humanos nessa área.
A performance de Babi exige uma preparação que antecede em semanas a realização do evento. Ela conta que é necessário aprender as letras das músicas, os ritmos, preparar a tradução e interpretação de expressões e gírias, participar de ensaios da banda e alinhar figurino e maquiagem. O trabalho inclui também discutir com a produção aspectos cruciais, como localização no palco, o que leva em conta a iluminação, de modo a que a visibilidade dos sinais e das expressões faciais não seja prejudicada. “De resto, é ter muito pique para passar toda a energia e vibração dessa festa para os foliões surdos”, recomenda.
A questão da visibilidade da performance para PcDs está prevista em 30% das ações da organização da sociedade civil (OSC) Instituto Cultural e Social no Setor, que promoverá no Carnaval deste ano o projeto Territórios Carnavalescos. A iniciativa, com aporte de termo de fomento no valor de R$ 1 milhão, prevê a geração de mil empregos diretos e mais de 30 postos de trabalho para moradores de rua.
“A gente usa painel de led para chamar mais atenção para as traduções”, adianta o representante legal da Osc, Felipe Velloso Santana, que começou a trabalhar com o carnaval quando surgiu a proposta de revitalizar o Setor Comercial Sul em 2018. “A gente trabalha com Libras desde 2020 porque temos várias atrações de palco. Tem um público grande que depende dessa tradução para ter um aproveitamento melhor da festa”, garante.
Raphael dos Anjos, que alterna os ambientes formais da UnB e da TV Câmara com eventos culturais, esclarece que há um equívoco quando as pessoas pensam que os surdos não se interessam por música. “Tive a oportunidade de interpretar alguns shows de axé recentemente em Brasília, e é incrível ver os surdos querendo copiar o intérprete, dançar junto. É ótimo vê-los se apropriando de músicas que são parte da história de cada um”, destaca.
Ele afirma que, aos poucos, os produtores estão entendendo que a acessibilidade não pode ser deixada para o final do projeto e que vale a pena investir em profissionais qualificados de acordo com o tipo de produto cultural, formal ou informal. “Quando vemos os surdos curtindo os blocos com toda sua diversidade, temos ainda mais certeza de como a acessibilidade é divisor de águas pra essa comunidade.”
Cerrado News/*Com informações da Agência Brasília
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